Impunidade e Dinheiro – Rinha de Pitbull em Mairiporã-SP alerta para rota internacional no Brasil e novo perfil de criminososPor Robis NassaroHá
quase 30 anos estudo e escrevo sobre leis de proteção dos animais. Nesse
período acompanhei muitas ocorrências envolvendo crueldade animal, porém, rinha
com cachorros no estado de São Paulo eu nunca tinha ouvido falar.Além
de ser novidade, pelo menos para mim, essa ocorrência tem particularidades
preocupantes em diversos aspectos, especialmente em relação ao perfil das pessoas flagradas e o contexto,
aparentemente internacional dos fatos; uma dimensão inusitada para uma rinha
paulista/brasileira.45 pessoas (43 adultos, 1 criança de 12 anos e 1 adolescente de 14
anos) foram flagradas em plena rinha de pitbulls durante operação, planejada e
executada pela Polícia Civil paranaense e paulista, no dia 14 de dezembro, em
Mairiporã – SP. 2
pitbulls estavam brigando entre si em uma arena montada para esse fim, enquanto
os criminosos torciam e apostavam do lado de fora do ringue, esperando o vencedor. A notícia é a
de que seriam realizadas, ainda, mais 26 disputas, além daquela; 18 pitbulls
aguardavam suas vezes.Os policiais descreveram um “cenário de sangue”, com animais mutilados
e extremamente debilitados. Os criminosos contavam com apoio especializado, a
fim de que os pitbulls fossem mantidos em alerta,
com remédios ministrados diretamente na veia. Um médico-veterinário e um médico foram flagrados no local e acredita-se que davam
suporte ao evento.A descrição
dos animais machucados e dos participantes insensíveis que apenas se
preocupavam em apostar
e torcer, não é muito
diferente daquelas que ocorrem em rinhas com galos, comuns em todo o Brasil,
à exceção do tratamento dado por médico
e médico veterinário, integrantes o grupo de criminosos.Porém, de fato, o que chama a atenção é a articulação (organização
criminosa) que garantiu a presença de pessoas de diversos estados e inclusive
de outros países e as características (perfil) dos envolvidos.Belém (PA),
Franca (SP), Mairiporã
(SP), Guarulhos (SP), São Paulo
(SP), São Bernardo
do Campo (SP), Barueri (SP), Taboão da Serra (SP), Jaú (SP), Araraquara
(SP), Cuiabá (MT), Canoas (RS), Pelotas (RS), Bagé (RS), João Pessoa (PB),
Goiânia (GO), Cordeiro (RJ), Manaus (AM), São Pedro de Alcântara (SC), Curitiba (PR), Peru, México
e Estados Unidos
são as origens das pessoas flagradas no evento.Como
essas pessoas se reuniram no mesmo dia e local (uma chácara em Mairiporã, de
difícil acesso), vindas de tão distante, se não for por meio de um plano bem
elaborado e executado exatamente para a rinha?Nesse
local, foram apreendidos pelo menos 38 mil reais em dinheiro vivo, incluídos
valores em dólares americanos, pesos mexicanos e solares peruanos, além de
diversos envelopes para depósito de dinheiro. Há notícias de que as rinhas eram
transmitidas ao vivo para diversos países, então, é provável que houvesse
também apostas on-line.Os
animais que brigavam entre si não eram de Mairiporã, em princípio. Uma das
pessoas flagradas, um peruano, mantinha 33 pitbulls em Itu-SP, em uma chácara,
com 2 empregadas e toda estrutura para treinar os animais para a briga;
supõe-se que ele era um dos responsáveis por fornecer animais e articular as
rinhas.Em Itu os policiais
encontraram os animais debilitados, isolados entre si e mantidos em pequenas
casinhas no tempo, tudo para ampliar seus níveis de agressividadeA
origem da investigação que levou à rinha em Mairiporã ainda não está divulgada,
entretanto, sabe-se que de Curitiba e de uma região próxima, também envolvendo
criação de pitbulls, chegou-se na rinha de Mairiporã e na chácara em Itu.O
que se vislumbra, até o momento, é que as pessoas foram ao local
especificamente para participar da rinha; elas integram uma rede que produz e
treina pitbulls para brigarem por apostas, sendo atraídas pela ganância de
dinheiro propiciado pelo sangue jorrado da crueldade animal.Ao colocar sob lentes o perfil dos envolvidos percebi que a formação
deles, em geral, não era tão elementar como em outros casos que pude pesquisar.Das
1.262 pessoas que tiveram suas fichas criminais analisadas em diversas
pesquisas que realizei, de 2010 a 2015, por terem participado de crimes
envolvendo crueldade animal, incluídas rinhas de galo (também de canários), 96%
delas possuíam apenas o ensino fundamental, 2% delas o ensino médio e 2 % o
ensino superior.Uma
das indicações, diante dessas constatações, é a de que, pelo menos sob o prisma
da estatística, há relação
entre a pouca formação escolar
e a crueldade animal, ou seja, a educação
tende a inibir o cometimento de crimes de maus-tratos a animais, considerando
que a maioria dos criminosos possuía apenas formação fundamental.Mas
o perfil dessas pessoas envolvidas na rinha de pitbulls é completamente diferente.
Apenas 11 delas têm o ensino fundamental, 20 delas possuem ensino médio e 10
ensino superior. (Não se conseguiu identificar a formação escolar de 2 dos
envolvidos).Ou
seja, praticamente 49% dos envolvidos possuem nível médio e 24% possuem formação
superior, indicando que esse é um grupo seleto, esclarecido, que foi atraído
para cometer os crimes.Nesse
grupo, formado apenas por homens, há professor, contador, representante
comercial, corretor de imóveis, confeiteiro, padeiro, cozinheiro, médico,
médico veterinário, técnico em agronomia, técnico em segurança do trabalho,
administrador de empresas, empresário, motoboy, dentre outros.Deles,
apenas 4 possuem outros registros criminais. Esse dado também é bem diferente
das outras pesquisas realizadas, em que encontrei porcentagem que variava de
30% a 40% de pessoas envolvidas em crueldade animal que possuía outros
registros criminais, além do crime de maus-tratos a animais.Em
relação a idade média das pessoas flagradas, é de 35 anos, idade 11 anos mais
baixa em relação as das pessoas pesquisadas nos outros estudos, que era de 46
anos.Ou
seja, essa ocorrência pode indicar um novo perfil de criminosos envolvidos com
crueldade animal. E por que seria especificamente para a rinha de pitbulls?Eu ouso apresentar 2
hipóteses.A primeira delas, em
relação ao perfil dos pesquisados.Viu-se que são pessoas
mais jovens, com profissão e esclarecidas, sob o ponto
de vista do ensino
formal.Não apresentam, em geral, ficha
criminal e, portanto, não devem ter tido origem em uma família
marcada por violência (nos demais
crimes de maus-tratos a animais a violência na família é fator
comum e costuma ser uma possível alavanca para a ampliação da insensibilidade e
da própria violência dos infratores mais tarde caracterizada em diversos
crimes, conforme indicado na Teoria do Link).Assim,
o dinheiro pode estar movimentando esse perfil de pessoas para a rinha de
pitbulls; dinheiro farto e ganho com apostas, que tradicionalmente já angariam
pessoas com tendência ao vício dos jogos de azar.A
desejável formação cidadã, ensinada nas escolas, se esvai nesse perfil, voltado
para os jogos e o dinheiro, mesmo que signifique enorme sofrimento dos animais.A
segunda hipótese é o ciência dos infratores da impunidade para os crimes de
maus-tratos a animais no Brasil.Os envolvidos são pessoas esclarecidas e, certamente, têm conhecimento de que os maus-tratos
a animais, como a rinha, por exemplo, constitui crime no Brasil, previsto no
art. 32 da Lei de Crimes Ambientais, Lei federal nº 9.605, de 1998.E
da mesma forma, sabem que a legislação penal não impõe aos criminosos que
cometem crueldade animal qualquer restrição de liberdade, como regra.Quando
muito e em situações excepcionais, mediante proposta do Ministério Público,
homologada pelo Juiz de Direito, determina-se alguma espécie de restrição de
direitos e horas de serviços comunitários; é mais comum, entretanto, que se
imponha apenas o pagamento de cestas básicas a pessoas carentes para crimes de
maus-tratos a animais.É a segunda hipótese, portanto, que justifica o fato de apostadores
brasileiros e estrangeiros, instigados pela possibilidade de altos ganhos
financeiros, em uma estrutura em rede (de produção e treinamento de animais e
cooptação de apostadores), estejam se envolvendo em rinhas de pitbulls no
Brasil, garantidos pela legislação penal brasileira que não impõe pena condizente
com a crueldade encontrada no cenário descrito pelos policiais; aqui parece que
o jargão “o crime compensa” é muito oportuno!Veja-se
que apenas uma das 43 pessoas flagradas no sítio em Mairiporã permaneceu presa,
sendo os demais criminosos postos imediatamente em liberdade, mesmo diante da
gravidade dos fatos amplamente divulgados na mídia nacional.A razão disso é que os crimes de maus-tratos a animais têm pena de 3 meses a 1 ano de detenção
e, portanto, é um crime de menor potencial ofensivo (Lei federal 9.605, de 1998 e Lei federal 9.099, de
1995). A Polícia apenas cumpriu a lei.Mais
tarde, 3 dias após os fatos, foi decretada a prisão preventiva de 22 dos
envolvidos, mas não pelo crime de maus-tratos e sim pelo fato de que os
criminosos não se apresentaram à Justiça no dia determinado; a depender das
penas previstas para os maus-tratos a animais as rinhas continuarão a existir
no Brasil.Creio que as
hipóteses se entrelacem ao final. Pessoas com formação que se submetem aos
elevados ganhos das apostas nas rinhas e a alta probabilidade de não sofrerem
nenhuma sanção mais
significativa, sob o ponto de vista penal (império da impunidade).Em
conjunto, elas propiciam um ambiente favorável para a indústria criminosa, com
criação, treinamento e transporte dos pitbulls, locação
de espaço e montagem dos ringues, contratação de médicos e médicos
veterinários, deslocamento e estadia para estrangeiros e transmissão das pelejas para todo o mundo, on-line e por quê não, também deve haver
uma forma de “lavar” o dinheiro ganho nas apostas. Não vi nenhum caso de rinhas
de galos em que toda essa estrutura
nacional e internacional tivesse disso executada.Mesmo
que as hipóteses apresentadas necessitem de confirmação, trata-se de um caso
gravíssimo que demanda
ampla e irrestrita apuração; tais crimes, não sendo punidos,
tendem a se arraigar
no território nacional
e com eles além da crueldade animal,
todas as demais
espécies de crimes e a consequente percepção de insegurança da população.A
sociedade tem dado mostras de que o crime de maus-tratos a animais é cada vez
menos tolerado, bastando observar a repercussão dessa e de outras ocorrências
nas mídias sociais.Porém,
é essencial que nossos representantes no Poder Legislativo acompanhem as
expectativas da esmagadora maioria dos brasileiros e reduzam, ao máximo, a
impunidade dos crimes de maus-tratos no Brasil.O Congresso
Nacional precisa dar andamento a discussão da ampliação das penas aos crimes de maus-tratos a animais; no momento, há
uma proposta aprovada pela Câmara dos Deputados, com ampliação para 1 a 4 anos
de reclusão, com início do cumprimento da pena em regime fechado,
exclusivamente para maus-tratos a cachorros e gatos (proposta do Deputado
Federal Fred Costa).Há
também outra proposta tramitando no Senado Federal com ampliação da pena para 1
a 4 anos de detenção (proposta do Senador Randolfe Rodrigues).Óbvio
que a proposta de reclusão é a mais indicada para inibir a percepção de
impunidade dos apostadores nacionais e internacionais, entretanto, qualquer das duas propostas, significará um bom avanço para
evitar crimes como o flagrado em Mairiporã.Apenas
a punição rigorosa e o cumprimento pleno da pena imposta, inclusive o pagamento
de multas mais elevadas, poderão tirar o Brasil do radar de país livre
para o cometimento de rinhas de pitbulls. Como brasileiro e
voltado ao respeito profundo pela vida é o que eu desejo para 2020.Robis Nassaro é Doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública, Pós-Graduado em Direito Público e Especialista em Direito Penal Ambiental. Autor da obra Maus-Tratos a Animais e Violência Contra Pessoas: A Aplicação da Teoria do Link nas Ocorrências da Polícia Militar Paulista (2013). É Tenente Coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
Bibliografia
NASSARO, Marcelo Robis Francisco. Maus-Tratos aos Animais e Violência Contra Pessoas: A Aplicação da
Teoria do Link nas Ocorrências da Polícia Militar Paulista. São Paulo:
Edição do Autor, 2013.
NASSARO,
Marcelo Robis Francisco. Maus-Tratos a Animais e Violência Contra Pessoas. In:
PAULINO, Mauro; ALCHIERI, João. Desvio,
Crime e Vitimologia. Lisboa: Pactor, 2018. p. 39-56.
NASSARO, Marcelo Robis Francisco. Maus-Tratos aos Animais e Violência
contra as Pessoas – A Aplicação da Teoria do Link nas Ocorrência. Aspectos Controversos dos Crimes Contra
Fauna, Belo Horizonte, p.40-47, mar. 2016. Anual.
NASSARO, Marcelo
Robis Francisco; ARKOW, Phil. Maus-tratos aos Animais como Outras Formas de Violência Familiar. In:
CASTILHO, Valdecir Vargas; REIS, Sérvio Tulio Jascinto; TOSTES, Raimundo
Alberto. Tratado de Medicina Veterinária
Legal. Curitiba: Medvep, 2017. Cap. 18. p. 364-382.